terça-feira

ENCONTRO MÁGICO


Eis que encontro na rua uma das moças mais lindas do mundo.
Vestida simplesmente, parecia no entanto uma princesa
Um meigo olhar, um sorriso que parecia uma aurora dentro de nós.
Não pude, não pude mais e lhe indaguei de súbito:
"Como é teu nome, minha querida?"
E ela respondeu-me simplesmente: AUSÊNCIA.

(Velório sem defunto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990)

DATA E DEDICATÓRIA


Teus poemas, não os dates nunca... Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho,
Se existe hora, é sempre a hora estrema
Quando o anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
Um poema é de sempre, Poeta:
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez ainda nem tenha nascido,
Dedica, pois, os teus poemas.
Não os dates, porém:
As almas não entendem disso...

Baú de espantos. Porto Alegre: Globo, 1986

A GRANDE SURPRESA


                                                                                                                                                                                                             




Mas que susto não irão levar essas velhas carolas
 se Deus existe mesmo...


(Caderno H. Porto Alegre: Globo, 1973)

domingo

DA PAGINAÇÃO


 Os livros de poemas devem ter margens largas e
muitas páginas em branco e suficientes claros nas
páginas impressas, para que as crianças possam enchê-los
de desenhos gatos, homens, aviões, casas,
chaminés, árvores, luas, pontes, automóveis, cachorros,
cavalos, bois, tranças, estrelas - que passarão
também a fazer parte dos poemas...

(In: Sapato Florido - 1948)

PEQUENA CRÔNICA POLICIAL


Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grave beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...

Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriam, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no Céu?!
La continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldita sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

(In: Canções 1946)

AMAR


Fechei os olhos para não te ver
e a minha boca para não dizer…
E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei,
e da minha boca fechada nasceram sussurros
e palavras mudas que te dediquei…

O amor é quando a gente mora um no outro.

(In: Poesia Completa –Editora Nova Aguilar -2005)

sábado

VIRAÇÃO


Voa um par de andorinhas, fazendo verão. E vêm uma vontade de rasgar velhas cartas, velhos poemas, velhas contas recebidas. Vontade de mudar de camisa, por fora e por dentro... Vontade... Para que esse pudor de certas palavras?... Vontade de amar, simplesmente.

[Mario Quintana; Sapato Florido, 1948]

CARRETO




Amar é mudar a alma de casa.


[in; Sapato Florido, 1948]

sexta-feira

A CARTA



Hoje encontrei dentro de um livro uma velha carta amarelecida,
Rasguei-a sem procurar ao menos saber de quem seria...
Eu tenho um medo
Horrível
A essas marés montantes do passado,
Com suas quilhas afundadas, com
Meus sucessivos cadáveres amarrados aos mastros e gáveas...
Ai de mim,
Ai de ti, ó velho mar profundo,
Eu venho sempre à tona de todos os meus naufrágios!



(In: Poesia Completa –Editora Nova Aguilar -2005)

quinta-feira

INDIVISÍVEIS




O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.
Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

In:Apontamentos de História Sobrenatural (1976)